FCMMG 2006
VOCAÇÕES
Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi para ver se estava com febre. Só na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica. Só tinha uma coisa. Não podia ver sangue.
− Mas, Leninha, como é que...
− Deixa que eu me arranjo.
Não é que ela tivesse nojo de sangue. Desmaiava. Não podia ver carne mal passada. Ou ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la. Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la − era o instinto médico −, mas botava o curativo com o rosto virado.
− Acertei? Acertei?
− Acertou o joelho. Só que é na outra perna.
Mas fez o vestibular para medicina, passou e preparou-se para começar o curso.
− E as aulas de anatomia, Leninha? Os cadáveres?
− Deixa que eu me arranjo.
Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissem um cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.
− Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio...
− Por favor, sem detalhes.
Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue. Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.
− É concentração, professor.
Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar em convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.
− Mais para a esquerda...Aí. Agora corta!
Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou uma alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso.
− Algum problema? − perguntou, pronta para medicá-lo.
− Não − tentou sorrir o homem. − É o avião...
− Você tem medo de voar?
− Pavor. Sempre tive.
− Então por que voa?
− Na minha profissão, é preciso.
− Qual é a sua profissão?
− Piloto.
Casaram-se uma semana depois.
(VERISSIMO, Luis Fernando. A mãe de Freud. São Paulo: Círculo do Livro, 1985)
A expressão usada no texto que ultrapassa o sentido literal é:
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