FCMMG 2007

PARAÍSOS ARTIFICIAIS

 

Combalido por terrível gripe, arrastei entre gemidos e lamúrias quatro dias de calvário – uma eternidade. Preso à cama com a fraqueza de famélicas crianças africanas, senti no meu frágil corpo as mesmas dores dos trucidados pela Inquisição e ardi com a febre que queima os pecadores no inferno – fácil ver que não tem limites a minha teatral
autopiedade diante do mais trivial desconforto. Nenhuma mulher deixaria de ir à praia com a mesma gripe e, no seu peculiar estoicismo, ainda debocharia do meu queixume de condenado à morte. Tanto sofrimento contaminou tudo o que disse, pensei e escrevi naqueles dias, e expôs vergonhosa nódoa na resistência e bravura que se atribui aos homens. Admito, com o cinismo dos covardes, que resisto com rara galhardia à dor moral, mas, à dor física, me torno um verme – eu e os bravos da terra. A dor me faz paciente obediente, leitor atento de bulas, pontual usuário da medicação, além de anotar sugestões de amigos que ligam para saber do meu estado – “Muito mal; não pode ser só
gripe, é muito mais grave, temo até que a minha hora esteja chegando” – e nunca deixam de sugerir a última novidade suíça, americana ou amezinha da tia Filó, de Cachoeira de Macacu. De tão ligado em remédio percebi o óbvio, mas que ainda não notara: a insana voracidade com que se usa remédio. O que se guardava no armário de banheiro, para uso eventual, agora está à mão em bolsos e bolsas, como cigarros e chicletes. Dor de cabeça ou muscular, resfriado, azia, má digestão, a pílula vai do bolso à boca sem interromper o papo. Droga virou dropes. A doença se banalizou – por isso não dão a mínima para a minha gripe! Ninguém mais fica cansado, mas estressado; não se tem medo, tem-se fobia. Alguém fica triste? Nunca, fica deprimido. Estados e emoções, antes normais aos seres humanos, ficaram démode. Agora, se fica logo doente: a patologia tomou o lugar da saúde. A clássica cólica mensal, nascida com Eva, hoje TPM – mal grave, de repercussões emocionais, aceito como atenuante criminal, requer Buscopan na bolsa. Se o incômodo for inoportuno, pode-se antecipar, adiar e até erradicar a menstruação. Executivo que não perde oportunidade de negócio leva no bolso camisinha, lenço de papel e Viagra – que, aliás, está bombando! Angustiado? – sua paz cabe no bolso de moeda. Insônia? Há pílulas cronometradas: dorme-se quanto se queira. Sonolento de manhã? Pílulas para reanimar. Acima do peso? Além de spas e zilhões de dietas, o Xenical está bombando – a gordura se esvai em horas e costuma arrastar até a alma. Para prova na faculdade, entrevista profissional, exame de motorista, intimação da Receita Federal, conhecer a pessoa desejada e até medo de avião – há dezenas de bolinhas para cada caso. Há festa à vista e rola um desânimo, os xaropes estimulantes – drogas ilegais são caras! – estão na farmácia! Se o olhar está nublado, colírios fazem deles estrelas cintilantes. Se rolar desgosto, tristeza ou apatia, aos antidepressivos já! – o Prozac está bombando – e você será a própria euforia. Se for o caso, comprimidos abreviam a dor do luto. Se pretender beber na festa, engula um antes de ir; se bebeu demais, outro antes de voltar; e outro se comeu demais – sem se esquecer daquele que evita a ressaca! Se cogita uma esticada, pílula anticoncepcional na barriga e camisinha à mão. Para os satisfeitos e os gulosos, Viagra na carteira! Mas se o interesse for outro esporte, excitantes e anabolizantes garantem recordista em tempo recorde. O remédio pode maquiar tudo: o corpo, a aparência, a personalidade e o humor! Com Prozac, Xenical e Viagra bombando – sem falar nos prodígios que vêm por aí -, não é feliz quem não quer. Acabaram-se os problemas psicológicos, crises do espírito, dramas de consciência, dúvidas da alma: a medicina resolveu tudo! E não só da vida, da morte também: onde admitem a eutanásia, remédios asseguram morte sem dor, aflição nem medo. Realizamos, enfim, o sonho inatingível: a certeza da vida feliz e o conforto extremo da morte também feliz. Após milhões de anos na Terra, o homem, que hesita se é um corpo ou tem um corpo, respondeu a milenar indagação sobre o mistério da felicidade humana: para ter saúde e ser feliz, não podemos viver sem remédios! Com essa revelação voltei para a cama. Bendisse a minha febre, o meu corpo dolorido e a minha gripe – mesmo que ela ameace meus dias de vida. Voltei a gemer e lamuriar como um covarde diante da dor. Mas acho que entendi o que Baudelaire, falando sobre o delírio provocado pelas drogas, chamou de paraísos artificiais.  

(Alcione Araújo , Estado de Minas , 15-5-2006)

 

 

O título do texto NÃO pode ser caracterizado como:

Escolha uma das alternativas.