FGV 2015

Uma tia-avó

Fico abismada de ver de quanta coisa não me lembro. Aliás, não me lembro de nada.
Por exemplo, 1as férias em que eu ia para uma cidade do interior de Minas, acho que nem cidade era, era uma rua, e passava por Belo Horizonte, 2onde tinha uma tia-avó.
Não poderia repetir o rosto dela, sei que muito magra, vestido até o chão, 3fantasma em cinzentos, levemente muda, deslizando por 4corredores de portas muito altas.
O clima da casa era de passado 5embrulhado em papel de seda amarfanhado, e posto no canto para que não se atrevesse a voltar à tona. Nem um riso, 6um barulho de copos tinindo. Quem estava ali sabia que quanto menos se mexesse menor o perigo de sofrer. Afinal o mundo era um 7vale de lágrimas.
8A casa dava para a rua, não tinha jardim, a não ser que você se aventurasse a subir uma escada de cimento, lateral, que te levava aos 9jardins suspensos da Babilônia.
Nem precisava ser sensível para sentir a secura, 10a geometria esturricada dos canteiros 11sob o céu de anil de Minas. Nada, nem uma flor, só coisas que espetavam e 12buxinhos com formatos rígidos e duras palmas e os 13urubus rodando alto, em cima, esperando… O quê? 14Segredos enterrados, medo, sentia eu 15destrambelhando escada abaixo.
16Na sala, uma cristaleira antiga com um 17cacho enorme de uvas enroladas em papel brilhante azul.
Para mim, pareciam 18uvas de chocolate, recheadas de bebida, mas não tinha coragem de pedir, estavam lá ano após ano, intocadas. A avó, baixinho, permitia, “Quer, pode pegar”, com voz neutra, mas eu declinava, 19doida de desejo.
Das comidas comuns da casa, não me lembro de uma couvinha que fosse, não me lembro de empregadas, cozinheiras, sala de jantar, nada.
Enfim, Belo Horizonte para mim era uma terra triste, de 20mulheres desesperadas e mudas enterradas no tempo, 21chocolates sedutores e proibidos. Só valia como passagem para a 22roça brilhante de sol que me esperava.

Nina Horta, Folha de S. Paulo, 17/07/2013. Adaptado.

Embora tenha sido publicado em jornal, o texto contém recursos mais comuns na linguagem literária do que na jornalística. Exemplificam tais recursos a hipérbole e a metáfora, que ocorrem, respectivamente, nos seguintes trechos:

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