ITA 2014

Não há hoje no mundo, em qualquer domínio de atividade artística, um artista cuja arte contenha maior universalidade que a de Charles Chaplin. A razão vem de que o tipo de Carlito é uma dessas criações que, salvo idiossincrasias muito raras, interessam e agradam a toda a gente. Como os heróis das lendas populares ou as personagens das velhas farsas de mamulengo.

 

Carlito é popular no sentido mais alto da palavra. Não saiu completo e definitivo da cabeça de Chaplin: foi uma criação em que o artista procedeu por uma sucessão de tentativas e erradas.

 

Chaplin observava sobre o público o efeito de cada detalhe. Um dos traços mais característicos da pessoa física de Carlito foi achado casual. Chaplin certa vez lembrou-se de arremedar a marcha desgovernada de um tabético. O público riu: estava fixado o andar habitual de Carlito. O vestuário da personagem – fraquezinho humorístico, calças lambazonas, botinas escarrapachadas, cartolinha – também se fixou pelo consenso do público.

 

Certa vez que Carlito trocou por outras as botinas escarrapachadas e a clássica cartolinha, o público não achou graça: estava desapontado. Chaplin eliminou imediatamente a variante. Sentiu com o público que ela destruía a unidade física do tipo. Podia ser jocosa também, mas não era mais Carlito. [...]

 

Aqui é que começa a genialidade de Chaplin. Descendo até o público, não só não se vulgarizou, mas ao contrário ganhou maior força de emoção e de poesia. A sua originalidade extremou-se. Ele soube isolar em seus dados pessoais, em sua inteligência e em sua sensibilidade de exceção, os elementos de irredutível humanidade. Como se diz em linguagem matemática, pôs em evidência o fator comum de todas as expressões humanas. O olhar de Carlito, no filme O Circo, para a brioche do menino faz rir a criançada como um gesto de gulodice engraçada. Para um adulto pode sugerir da maneira mais dramática todas as categorias do desejo. A sua arte simplificou-se ao mesmo tempo que se aprofundou e alargou. Cada espectador pode encontrar nela o que procura: o riso, a crítica, o lirismo ou ainda o contrário de tudo isso.[...]

Por mais ao par que se esteja do caráter prático do americano, do seu critério de sucesso para julgamento das ações humanas, do seu gosto pela estandardização, não deixa de surpreender aquela interpretação moralista dos filmes de Chaplin. Bem examinadas as coisas, não havia motivo para surpresa. A interpretação cabe perfeitamente dentro do tipo e mais: o americano bem verdadeiramente americano, o que veda a entrada do seu território a doentes e estropiados, o que propõe o pacto contra a guerra e ao mesmo tempo assalta a Nicarágua, não poderia sentir de outro modo. [...]

(Em: BANDEIRA, M. Crônicas da Província do Brasil. 1937.)

 

Assinale a opção cujo elemento coesivo em negrito substitui os dois pontos sem alterar o sentido do enunciado.

Escolha uma das alternativas.