UERJ 2009

Piaimã1

A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu2 (...) não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons3 campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás4 as inajás5 de curuatás6 de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã7 famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d’água8, em bulhas9 de sarapantar10.

Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs11 deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói!

(...)

Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:

— Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe.

MÁRIO DE ANDRADE Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.

Vocabulário:
1 Piaimã – personagem do romance
2 sagüi-açu, sagüim – macacos pequenos
3 cláxon – buzina externa nos automóveis antigos
4 boitatá – cobra-de-fogo, na mitologia tupi-guarani
5 inajá – palmeira de tamanho médio
6 curuatá – flor de palmeira
7 Tupã – entidade da mitologia tupi-guarani
8 Mãe-d’água – espécie de sereia das águas amazônicas
9 bulha – confusão de sons
10 sarapantar – espantar
11 cunhã – mulher jovem, em tupi

 

No primeiro parágrafo, a intensidade da experiência do herói, no contato com a modernização da cidade, ganha ênfase.

O recurso narrativo que exprime essa ênfase se constitui pela:

Escolha uma das alternativas.