PUC-RS 2004
O canteiro de palavras
Qual é o seu ofício - me pergunta com certa formalidade o simpático velhinho da fila do banco, depois do cumprimento habitual e do comentário sobre o tempo, rotinas que servem para quebrar o gelo (no nosso clima, literalmente) entre desconhecidos circunstancialmente íntimos pela espera compartilhada. Quase digo que sou 2jornalista, mas me policio porque conheço o poder inibidor da minha profissão.
- Vivo de escrever! - respondo no mesmo tom evasivo, tentando decifrar o efeito da resposta no seu olhar enrugado. Lembro de um escritor que falou coisa semelhante para uma empregada de poucas luzes e recebeu de volta um comentário um tanto surrealista, provavelmente buscado nos anúncios de empregos dos jornais:
- Ah, o senhor tem redação própria?
Mas o meu interlocutor momentâneo não manifesta qualquer curiosidade sobre o gênero dos meus escritos, se preencho notas fiscais ou elaboro poemas parnasianos. Está mais interessado em mostrar suas duas mãos, dois conjuntos desarmônicos de calos e cicatrizes.
- Eu sou cortador de pedras - me diz com indisfarçável orgulho de quem detém um dote raro.
Antes que a fila ande, tenho tempo ainda para ouvir algumas explicações sobre a arte de tirar paralelepípedos da rocha bruta, sobre as ferramentas que usa e sobre a quantidade de peças que produz. Ouço em silêncio para não perturbar a narrativa, mas seu trabalho não me é estranho. Perto de minha casa há uma pedreira. Conheço a faina dos homens empoeirados que lá labutam. De vez em quando fico ouvindo a distância o martelar dos 1canteiros e pensando na célebre fábula sobre ________, escrita por Jacob Riis, que tem como personagem exatamente um cortador de pedras. Diz mais ou menos o seguinte: "Quando nada parece dar certo, eu observo o homem que corta pedras. Ele martela uma, duas, centenas de vezes, sem que uma só rachadura apareça. Porém, na centésima primeira martelada, a pedra se abre em duas. E eu sei que não foi aquela pancada que operou o milagre, mas todas as que vieram antes".
Pois 3escrever, me dou conta enquanto preencho o 4cheque, não deixa de ser um processo 5semelhante. A gente martela centenas de vezes até que brote do cérebro (ou do dicionário) a palavra adequada, talvez a única capaz de servir à construção literária 6planejada. Nem sempre se consegue. A não ser que o canteiro de letras tenha o talento daquele escultor de estátuas equestres que explicava com simplicidade como conseguia tal perfeição:
- Eu tiro da pedra tudo o que não seja cavalo.
Nilson de Souza
Zero Hora, 17 de julho de 1996
Sobre o título do texto, é correto afirmar que:
I. a palavra "canteiro" é polissêmica, e o leitor que se detiver apenas no título corre o risco de fazer uma inferência incorreta sobre o conteúdo do texto.
II. o título expressa a analogia que o autor faz entre a atividade do cortador de pedras e a do escritor.
III. se o leitor desconhecer o sentido da palavra "canteiro", pode observar a ocorrência desse vocábulo (ref. 1) e inferir seu significado recorrendo ao que ficou dito antes e ao que vem escrito depois, sem precisar consultar o dicionário.
IV. a ambiguidade do título é reforçada pelo emprego da preposição "de", que tanto pode indicar, neste caso, uma relação entre possuidor e objeto possuído, quanto a ideia de meio.
Pela análise das afirmativas, conclui-se que estão corretas
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