UEL 2006

A questão refere-se aos parágrafos iniciais do IX capítulo de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), intitulado “Carta Pràs Icamiabas”.


Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.

Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.


Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós se afirma cavalgardes belígeros ginetes e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperador vosso, tais dislates da erudição, porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa pátina respeitável da tradição e da pureza antiga.


Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos, pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitam e até mesmo muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar a vossas trompas de Eustáquio, é quasi desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns desses termos são eologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalámico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição Crítica de Telê Porto Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978, p. 71-72.

 

Macunaíma, personagem criada por Mário de Andrade, oscila entre duas ordens de valores: os europeus e aqueles do Uraricoera. Na carta destinada às icamiabas, antecipa sua desastrosa opção final pelos valores europeus dos quais, na verdade, tem pouco conhecimento. Assim sendo, a carta (capítulo IX) antecipa episódio final no qual: 

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