UERJ 2011

De repente voltou-me a ideia de construir o livro. (...)

 

Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar (...).

 

Às vezes, entro pela noite, passo tempo sem fim acordando lembranças. Outras vezes não me ajeito com esta ocupação nova.

 

Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que sinto.

 

Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. (...) Não tenho doença nenhuma.

 

O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

 

Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! (...)

 

Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em momentos de otimismo suponho que há nela pedaços melhores que a literatura do Gondim. Sou, pois, superior a mestre Caetano e a outros semelhantes. Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha.

 

(...)

 

Quanto às vantagens restantes – casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. – é preciso convir em que tudo está fora de mim.

 

Julgo que me desnorteei numa errada.

GRACILIANO RAMOS

São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

 

As palavras do narrador expõem a extensão de seu sofrimento na tomada de consciência que impulsiona a escrita de seu livro. Na tentativa de descrever a si mesmo e confessar suas culpas, o personagem-narrador muitas vezes parece dirigir-se ao leitor.

 

Dos fragmentos transcritos abaixo, aquele que exemplifica esse diálogo sugerido com o leitor é:

Escolha uma das alternativas.