UERJ 2014

O tempo em que o mundo tinha a nossa idade


Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos improvisos. As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso. Não lhe deitávamos dentro da casa: ele sempre recusara cama feita. Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar. Nós simplesmente lhe encostávamos na parede da casa. Ali ficava até de manhã. Lhe encontrávamos coberto de formigas. Parece que os insectos gostavam do suor docicado do velho Taímo.Ele nem sentia o corrupio do formigueiro em sua pele.


− Chiças: transpiro mais que palmeira!


Proferia tontices enquanto ia acordando.Nós lhe sacudíamos os infatigáveis bichos.Taímo nos sacudia a nós, incomodado por lhe dedicarmos cuidados.


Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:


− Venham: papá teve um sonho!


E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe tinham sido reveladas. Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.


− Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.


E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. (...)
Mia Couto
Terra sonâmbula. São Paulo, Cia das Letras, 2007.

 

A escrita literária de Mia Couto explora diversas camadas da linguagem: vocabulário, construções
sintáticas, sonoridade.


O exemplo em que ocorre claramente exploração da sonoridade das palavras é:

Escolha uma das alternativas.