UFJF 2014

TEXTO I

O professor e sociólogo analisa a violência no Brasil

  A sociedade brasileira é violenta? Estamos enganados com essa história de que o brasileiro é cordial?

  O mito da cordialidade já foi contestado há muito tempo. Chego a defender o argumento de que você pode até escrever a história social da sociedade brasileira como a história social e política da violência. A violência sempre foi um recurso utilizado nas relações de dominação e de mando – seja nas fazendas, na vida doméstica, seja no plano da vida política. Veja, por exemplo, que os movimentos de rebelião popular sempre foram muito contidos com o uso de uma violência extrema, não se pouparam vidas. Durante o século XIX, todos os movimentos sociais de raízes populares foram reprimidos com muita violência, como a Sabinada [rebelião autonomista ocorrida na Bahia, de 1837 a 1838, que chegou a proclamar uma república baiana] e a Balaiada [revolta de caráter social ocorrida entre 1838 e 1841, no interior do Maranhão]. Na vida doméstica, o modo como se tratavam os escravos, as crianças, as mulheres e os desafetos também sempre foi com o emprego de muita violência. Há uma extrema violência ao lidar com as diferenças, quando você tem de lidar com conflitos, com interesses opostos. Ou seja, a gente pode dizer que há um lastro de violência tanto na cultura quanto na política brasileira. Mas não acho que seja só isso. É claro que há manifestações de solidariedade. Não gosto de usar o conceito de cultura da violência como se houvesse uma cultura à parte da cultura geral. Sabemos que, cientificamente, isso não ocorre. Existem traços de cultura que, de alguma maneira, estão associados a outros traços de cultura. Uma espécie de sincretismo.

  Podemos creditar a violência que permeia a sociedade brasileira à maneira como se deu nossa colonização? Por exemplo, os portugueses escravizaram índios e negros com uma atitude extremamente violenta.

  Certamente a escravidão deixou marcas. Por que se lidou com o escravo com muita violência? Porque o escravo era coisa, não era pessoa, era mercadoria. Por isso, a ideia de que você decide o que quer fazer com a mercadoria, se quer dispor dela produtivamente ou improdutivamente. Resgatar a dimensão de humanidade dos escravos é uma tarefa cultural imensa da sociedade. Mas claramente não conseguimos resultados dos mais adequados, porque ainda há desigualdade entre brancos e negros. Não acho que a gente deva descartar as heranças escravistas, mas o argumento da herança colonial também é perigoso. Primeiro, porque, no momento em que se diz que a violência tem causa nas nossas heranças, reforça-se o argumento da história como algo congelado no tempo. A história aconteceu lá e continua acontecendo hoje. Por mais que as nossas heranças pesem, elas são atualizadas, são reinterpretadas. Não dá para você achar simplesmente que a herança explica tudo. O problema é que a sociedade brasileira construiu um Estado que, durante muito tempo, foi de proteção das classes proprietárias contra o resto da população. Vivemos em uma sociedade de fundo conservador, uma sociedade com muitas dificuldades de promover rupturas.

  Você acha que o brasileiro tem um caráter acomodado? Por exemplo, critica-se que quase não houve reação da população ao golpe ocorrido em 1964, responsável pela instalação da ditadura militar no país.

  Como sociólogo, tenho uma enorme dificuldade de falar sobre o caráter nacional brasileiro. Há um clássico estudo do professor Dante Moreira Leite, daqui da USP, que é um livro chamado O caráter nacional brasileiro [a obra ganhou uma edição em 2003 pela Unesp]. Nesse livro, ele questiona essa imagem de que o brasileiro é mais cordato, mais contemporizador - de alguma maneira isso está na literatura, no senso comum, na imprensa. Há brasileiros e brasileiros. Por exemplo, ser brasileiro no Sudeste é muito diferente de ser brasileiro no Nordeste ou no Norte, ou ser brasileiro branco é diferente de ser brasileiro negro. Então, é difícil dizer o que é o Brasil. Acho que é preciso entender que, provavelmente, o golpe tenha matizes muito diferentes. Tradicionalmente, a sociedade brasileira não é uma sociedade polarizada entre duas grandes tendências, de direita e de esquerda, como aconteceu no Chile ou na Argentina. Você tem matizes na direita, na esquerda e um grande centro. Você pode dizer que, desses matizes, houve uma parte da sociedade brasileira que protestou mesmo. Mas foi cassada, foi expulsa do espaço público, muitos foram perseguidos politicamente e tiveram suas mínimas garantias constitucionais suspensas. E também houve uma parte que, de alguma maneira, ficou em silêncio. Acho que a gente tem de pensar que o cenário não era homogêneo.

ADORNO, Sérgio. Entrevista. Revista E, n. 127, dez. 2007. Disponível em: http://www.nevusp.org/. Acesso em : 12 ago 2014.

 

TEXTO II

A máquina mitológica

  O grande mito que sustenta a imaginação social é o da não-violência. Nossa auto-imagem é a de um povo ordeiro e pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das diferenças regionais e destinado a um grande futuro. Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para se conservar.

  [...]

  Em resumo, a violência não é percebida como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. O mito da não-violência permanece porque admite-se a existência empírica da violência, mas fabricam-se explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida. Mais do que isso, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas. Dessa maneira, a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras, por não ser percebida, é naturalizada, e essa naturalização conserva a mitologia da não-violência.

CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. In: Estudos Avançados. Vol. 9. N. 25. 1995. Disponível em: . Acesso em : 12 ago 2014.

 

 

Nos Textos I e II, Sérgio Adorno e Marilena Chauí apresentam:

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