UNIPAM 2013

Um “exercício de ubiqüidade”, esta “impertinente ausência”, de Michel de Certeau.

 

A autonomia do leitor depende de uma transformação das relações sociais que sobredeterminam a sua relação com os textos. [...]. Destacar alguns aspectos da operação leitora indica já como é que ela escapa à lei da informação.

“Leio e me ponho a pensar... Minha leitura seria então a minha impertinente ausência. Seria a leitura um exercício de ubiqüidade?” Experiência iniciática: ler é estar alhures, onde não se está, em outro mundo; é constituir uma cena secreta, lugar onde se entra e de onde se sai à vontade; é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência tecnocrática e àquela luz implacável que, em Genet, materializa o inferno da alienação social. Já o observava Marguerite Duras: “Talvez se leia sempre no escuro... A leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro”.

O leitor é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo. Robinson de uma ilha a descobrir, mas “possuído” também por seu próprio carnaval que introduz o múltiplo e a diferença no sistema escrito de uma sociedade e de um texto. Autor romanesco, portanto. Ele se desterritorializa, oscilando em um não lugar entre o que inventa e o que modifica. Ora efetivamente como o caçador da floresta, ele tem o escrito à vista, descobre uma pista, ri, faz “golpes”, ou então, como jogador deixa-se prender aí. Ora perde aí as seguranças fictícias da realidade: suas fugas o exilam das certezas que colocam o eu no seu tabuleiro social. Quem lê com efeito? Sou eu ou o quê de mim? “Não sou eu como uma verdade, mas eu como a incerteza do eu, lendo estes textos da perdição[...]” .

Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antigamente mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços, construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. A escritura acumula, estoca e resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido.

Com efeito, a leitura não tem lugar: Barthes lê Proust no texto de Stendhal; o telespectador lê a paisagem de sua infância na reportagem da atualidade. A telespectadora que diz da emissão vista na véspera: “Era uma coisa idiota, mas eu não desligava”, qual era o lugar que a prendia, que era e no entanto não era o da imagem vista? O mesmo se dá com o leitor: seu lugar não é aqui ou lá, um ou outro, mas nem um nem outro, simultaneamente dentro e fora, perdendo tanto um como o outro misturando-os, associando textos adormecidos mas que ele desperta e habita, não sendo nunca o seu proprietário. Assim, escapa também à lei de cada texto em particular, como à do meio social.
(CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998).

 

Assinale a alternativa que faz uma leitura EQUIVOCADA do recurso sintático e/ou textual sublinhado no fragmento selecionado.

Escolha uma das alternativas.