UECE 2016

O texto é um excerto de Baú de Ossos (volume 1), do médico e escritor mineiro Pedro Nava. Inclui-se essa obra no gênero memorialístico, que é predominantemente narrativo. Nesse gênero, são contados episódios verídicos ou baseados em fatos reais, que ficaram na memória do autor. Isso o distingue da biografia, que se propõe contar a história de uma pessoa específica.

1O meu amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade é autor 2do conto “Quando minha avó morreu”. Sei por ele que é uma história autobiográfica. 3Aí Rodrigo confessa ter passado, aos 11 anos, por fase da vida em que 4se sentia profundamente corrupto. Violava as promessas feitas de noite a Nossa Senhora; mentia desabridamente; faltava às aulas para tomar banho no rio e pescar na Barroca com companheiros vadios; furtava 5pratinhas de dois mil-réis... 6Ai! de mim que mais cedo que o amigo também 7abracei a senda do crime e enveredei pela do furto... 8Amante das artes plásticas desde cedo, educado no culto do belo, eu não pude me conter. Eram duas coleções de postais pertencentes a minha prima Maria Luísa Palleta. Numa, toda a vida de Paulo e Virgínia – do idílio infantil ao navio desmantelado na procela. Pobre Virgínia, dos cabelos esvoaçantes! Noutra, a de Joana d’Arc, desde os tempos de pastora e das vozes ao da morte. Pobre Joana dos cabelos em chama! Não resisti. Furtei, escondi e depois de longos êxtases, com medo, joguei tudo fora. Terceiro roubo, terceira coleção de postais – a que um carcamano, chamado Adriano Merlo, escrevia a uma de minhas tias. Os cartões eram fabulosos. Novas contemplações solitárias e piquei tudo de latrina abaixo. Mas o mais grave foi o roubo de uma nota de cinco mil-réis, do patrimônio da própria Inhá Luísa. De posse dessa fortuna nababesca, comprei um livro e uma lâmpada elétrica de tamanho desmedido. Fui para o parque Halfeld com o butim de minha pirataria. Joguei o troco num bueiro. Como ainda não soubesse ler, rasguei o livro e atirei seus restos em um tanque. 9A lâmpada, enorme, esfregada, não fez aparecer nenhum gênio. Fui me desfazer de mais esse cadáver na escada da Igreja de São Sebastião. 10Lá a estourei, tendo a impressão de ouvir os trovões e o morro do Imperador desabando nas minhas costas. Depois dessa série de atos gratuitos e delitos inúteis, voltei para casa. 11Raskólnikov. O mais estranho é que houve crime, e não castigo. Crime perfeito. Ninguém desconfiou. Minha avó não deu por falta de sua cédula. 12Eu fiquei por conta das Fúrias de um remorso, que me perseguiu toda a infância, veio comigo pela vida afora, com a terrível impressão de que eu poderia reincidir porque vocês sabem, 13cesteiro que faz um cesto... 14Só me tranquilizei anos depois, já médico, quando li num livro de Psicologia que só se deve considerar roubo o que a criança faz com proveito e dolo. O furto inútil é fisiológico e psicologicamente normal. Graças a Deus! Fiquei absolvido do meu ato gratuito... 

(Pedro Nava. Baú de ossos. Memórias 1. p. 308 a 310.) 


Considere o advérbio “Aí” (ref. 3). Observe o que se diz sobre ele. 

I. Pode ser substituído, no texto, por outro advérbio: “então”.
II. Retoma anaforicamente a expressão “(d)o conto ‘Quando minha avó morreu’” (ref. 2).
III. Poderia ser substituído, no texto, por expressões como nesse conto ou no conto a que me referi.

Está correto o que se diz apenas em 

Escolha uma das alternativas.