UECE 2019
Sons que confortam
Martha Medeiros
1Eram quatro da manhã quando seu pai sofreu um colapso cardíaco. 2Só estavam os três na casa: o pai, a mãe e ele, um garoto de 13 anos. Chamaram o médico da família.
3E aguardaram. E aguardaram. E aguardaram.4Até que o garoto escutou um barulho lá fora. É ele que conta, hoje, adulto:5Nunca na vida ouvira um som mais lindo, mais calmante, do que os pneus daquele carro amassando as folhas de outono empilhadas junto ao meio-fio.
6Inesquecível, para o menino, foi ouvir o som do carro do médico se aproximando, o homem que salvaria seu pai. Na mesma hora em que li esse relato, imaginei um sem-número de sons que nos confortam. A começar pelo choro na sala de parto. Seu filho nasceu. E o mais aliviante para pais que possuem adolescentes baladeiros:7o barulho da chave abrindo a fechadura da porta. Seu filho voltou.
E pode parecer mórbido para uns, masoquismo para outros, mas há quem mate a saudade assim: ouvindo pela enésima vez8o recado na secretária eletrônica de alguém que já morreu.
Deixando a categoria dos sons magnânimos para a dos sons cotidianos: a voz no alto-falante do aeroporto dizendo que a aeronave já se encontra em solo e o embarque será feito dentro de poucos minutos.
9O sinal, dentro do teatro, avisando que as luzes serão apagadas e o espetáculo irá começar.
O telefone tocando exatamente no horário que se espera, conforme o combinado.10Até a musiquinha que antecede a chamada a cobrar pode ser bem-vinda, se for grande a ansiedade para se falar com alguém distante.
O barulho da chuva forte no meio da madrugada, quando você está no quentinho da sua cama.
Uma conversa em outro idioma na mesa ao lado da sua, provocando a falsa sensação de que você está viajando, de férias em algum lugar estrangeiro. E estando em algum lugar estrangeiro, ouvir o seu idioma natal sendo falado por alguém que passou, fazendo você lembrar que o mundo não é tão vasto assim.
11O toque do interfone quando se aguarda ansiosamente a chegada do namorado. Ou mesmo a chegada da pizza.
O aviso sonoro de que entrou um torpedo no seu celular.
12A sirene da fábrica anunciando o fim de mais um dia de trabalho.
13O sinal da hora do recreio.
14A música que você mais gosta tocando no rádio do carro. Aumente o volume.
O aplauso depois que você, nervoso, falou em público para dezenas de desconhecidos.
15O primeiro eu te amo dito por quem você também começou a amar.
E o mais raro de todos: o silêncio absoluto.
MEDEIROS, Martha.Feliz por nada. São Paulo: L&PM Editores, 2011.
Em função de uma linguagem mais simples e coloquial, a crônica, muitas vezes, pode “desrespeitar” a norma gramatical própria do uso culto da escrita formal da língua, o que pode ser observado no texto de Martha Medeiros na seguinte passagem:
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