G1 1996

A FUGA

 

Mal colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal.

- Para com esse barulho, meu filho - falou, sem se voltar.

Com três anos, já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, só estava empurrando uma cadeira.

- Pois então para de empurrar a cadeira.

- Eu vou embora - foi a resposta.

Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano, era sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa? a mãe mais tarde irá saber), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante.

A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:

- Viu um menino saindo desta casa? - gritou para o operário que descansava diante da obra, do outro lado da rua, sentado no meio-fio.

- Saiu agora mesmo com uma trouxinha - informou ele.

Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro.

A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o pedaço de biscoito e - saíra de casa prevenido - uma moeda de um cruzeiro. Chamou-o mas ele apertou o passinho e abriu a correr em direção à avenida, como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia à distância.

- Meu filho, cuidado!

O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto.

O menino, assustado arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como um animalzinho:

- Que susto você me passou, meu filho - e apertava-o contra o peito comovido.

- Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.

Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:

- Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.

- Me larga. Eu quero ir embora.

Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala - tendo antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave, como ele fizera com a da despensa.

- Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.

- Fico, mas vou empurrar esta cadeira.

E o barulho recomeçou.

 

FERNANDO SABINO

 

Observe a palavra "Distraído". Está acentuada porque: 

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