FGV-RJ 2013

BOCAGE NO FUTEBOL


Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: — não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: — “Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema.

 

Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: — os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.

 

Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: — o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Nélson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

 

Leia também este texto, para responder à questão.


Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu
ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se
fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor
animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi
depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os
adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua
vez a comunica ao belicoso Pinga. (...)

 

Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à
maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos.

Carlos Drummond de Andrade, Quando é dia de futebol. Rio: Record, 2002.

 

Ambos os textos – o de Nélson Rodrigues e o de Drummond – pertencem à modalidade textual conhecida como

Escolha uma das alternativas.