UNESP 2014

São Paulo, 10 de março de 1867.

Estamos em plena quaresma.
A população paulista azafama-se a preparar-se para a lavagem geral das consciências nas águas lustrais do confessionário e do jejum.
A cambuquira* e o bacalhau afidalgam-se no mercado.
A carne, mísera condenada pelos santos concílios, fica reduzida aos pouquíssimos dentes acatólicos da população, e desce quase a zero na pauta dos preços.
O que não sobe nem desce na escala dos fatos normais é a vilania, a usura, o egoísmo, a estatística dos crimes e o montão de fatos vergonhosos, perversos, ruins e feios que precedem todas as contrições oficiais do confessionário, e que depois delas continuam com imperturbável regularidade.
É o caso de desejar-se mais obras e menos palavras.
E se não, de que é que serve o jejum, as macerações, o arrependimento, a contrição e quejandas religiosidades?
O que é a religião sem o aperfeiçoamento moral da consciência?
O que vale a perturbação das funções gastronômicas do estômago sem consciência livre, ilustrada, honesta e virtuosa?
Seja como for, o fato é que a quaresma toma as rédeas do governo social, e tudo entristece, e tudo esfria com o exercício de seus místicos preceitos de silêncio e meditação.
De que é que vale a meditação por ofício, a meditação hipócrita e obrigada, que consiste unicamente na aparência?
Pois o que é que constitui a virtude? É a forma ou é o fundo? É a intenção do ato, ou sua feição ostensiva?
Neste sentido, aconselhamos aos bons leitores que comutem sem o menor escrúpulo os jejuns, as confissões e rezas em boas e santas ações, em esmolas aos pobres.

(Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis. Cabrião, 10.03.1867. Adaptado.)

* Iguaria constituída de brotos de abóbora guisados, geralmente servida como acompanhamento de assados.

[...] fica reduzida aos pouquíssimos dentes acatólicos da população.

Na expressão dentes acatólicos, a palavra “dentes” é empregada em lugar de “pessoas”, segundo uma relação semântica de

Escolha uma das alternativas.