UPE 2013

Fragmento do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida

I Origem, Nascimento e Batismo.

 

Era no tempo do rei.

 

Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando‐se mutuamente, chamava‐se nesse tempo  ‐  O canto dos meirinhos ‐; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando‐se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo. Daí sua influência moral.

 

Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem‐se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos, nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado.  

 

Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê‐la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível ‐ Dou‐me por citado.  ‐ Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! Eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem‐número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis    Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.

Disponível em: http://stat.correioweb.com.br/arquivos/educacao/arquivos/ManuelAntniodeAlmeida-emriasdeumSargentodeMilcias0.pdf. Acesso em: 18/09/2013

 

Sobre o texto, analise as afirmativas a seguir:

 

I. O livro Memórias de um Sargento de Milícias (1852), de Manuel Antônio de Almeida, distanciando‐se dos textos produzidos por autores mais identificados com a estética romântica, possui nuances que lhe configuram uma novela categorizada como realista.

II. Pelo que se lê no fragmento do livro de Manuel Antônio de Almeida, a palavra “meirinhos”, utilizada repetidas vezes, evidencia, de forma contundente, as principais características da época de transição na qual o livro se encaixa.

III. O tema abordado em Memórias de um Sargento de Milícias (1852), de alguma maneira, anuncia temas, direta ou indiretamente, os quais virão a ser tratados em obras que se coadunam mais com a estética literária realista.

IV. No fragmento analisado, o narrador comenta sobre as demais personagens com um certo “tom” irônico, atitude ficcional pouco comum, por exemplo, no romance A moreninha (1844), de vez em quando.

V. Segundo o que lemos no fragmento analisado, o “cidadão” que, porventura, durante o seu trajeto, encontrasse um “meirinho” teria de arcar com problemas relacionados a despesas, envolvendo figuras oficiais.

 

Estão CORRETAS

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